Excertos do Diretório da Pastoral Familiar, da CNBB - I

A CNBB lançou, faz algum tempo, um excelente documento. Geralmente, torcemos o nariz, com razão, para aqueles documentos de nossa conferência episcopal, que só se preocupam com temas políticos, em distorcer o que ensina a Santa Sé, ou recheados daquela linguagem caricata tão própria quer da teologia da libertação quer dos ambientes eclesiásticos brasileiros - que falam, falam, mas não dizem nada.

O documento de que falo é o de número 79, e tem por título "Diretório da Pastoral Familiar". Foi aprovado canonicamente pela 42ª Assembléia Geral da CNBB, em 2004, e confirmado por Roma. O conteúdo é católico. E a linguagem também. Católico, correto, claro, profundo. Digno de um documento de Bispos.

Passaremos a transcrever alguns trechos interessantes do referido documento, que pode, aliás, ser baixado no site da CNBB.

O matrimônio e a família: obra predileta de Deus

45. Deus, criador de tudo, criou o homem e a mulher como efusão de seu amor. Amou-os infinitamente e lhes deu uma vocação ao amor e à comunhão. A família, conseqüência dessa vocação, é, dentre todas as suas obras, a obra predileta de Deus nesse seu projeto de amor. Ela não é criação humana, nem do Estado, nem da Igreja. É constitutivamente ligada à natureza do homem e da mulher, para o bem e a felicidade pessoal, da sociedade e da Igreja.

46. Cada homem e cada mulher são chamados a realizar esse projeto. São chamados, por graça, a uma aliança com seu Criador, a oferecer-lhe uma resposta de fé e de amor que ninguém mais pode dar em seu lugar. Para aceitarem participar desse projeto é preciso conhecê-lo. Esta é a finalidade do presente capítulo.

Chamados ao amor

47. Deus coloca no centro da criação o homem e a mulher, com suas diferenças e semelhanças, mas com igual dignidade. Deus criou-os à sua imagem e semelhança, chamando-os à existência por amor e para amar. Esta afirmação constitui o ponto de partida de toda a reflexão que a exortação apostólica Familiaris Consortio faz sobre o matrimônio e a família e sua missão no mundo de hoje.

48. De todas as criaturas visíveis, só o ser humano é capaz de conhecer e amar o seu Criador; ele é a única criatura na terra que Deus quis em si mesma; só ele é chamado a compartilhar, pelo conhecimento e o amor, a vida de Deus. Foi para este fim que o ser humano foi criado, e aí reside a razão fundamental da sua dignidade.

49. A imagem de Deus impressa no ser humano é a imagem de Deus-Trindade, que é essencialmente comunhão. Comunhão de amor, da qual o ser humano é chamado a participar. O amor é, portanto, a fundamental e originária vocação do ser humano. A unidade na Trindade é unidade de comunhão. Homem e mulher são chamados a viver essa unidade numa comunhão de amor, por meio do dom sincero de si mesmos. Contudo, há uma diferença profundamente constitutiva entre os dois. E essa conduz, no amor que os enlaça, à harmonia de uma perfeita e feliz unidade esponsal.

50. Deus ama cada ser humano pessoalmente. Chama-o, pelo nome, à existência e quer levá-lo à plena realização de seu plano de amor, saciando os seus anseios mais profundos. Deus ama incondicionalmente, porque Deus é Amor.

51. Jesus Cristo, ao tornar-se um de nós, elevou a dignidade do ser humano ao seu nível mais alto. Por sua ressurreição e ascensão, introduziu nossa humanidade no seio da própria Trindade, consumando em plenitude nossa vocação ao amor. Essa vocação encontra uma significação específica no matrimônio, considerado pela Igreja como uma “íntima comunhão de vida e de amor conjugal”.
O matrimônio natural

52. O matrimônio é projeto de Deus desde a criação do homem e da mulher. Mesmo antes de ter sido elevado por Cristo à dignidade de sacramento. Por isso, o matrimônio natural tem propriedades e finalidades que são essenciais tanto para cristãos como para não-cristãos.

53. Esta verdade tem conseqüências importantes e profundas, já que todos os argumentos utilizados para salvaguardar, por exemplo, a indissolubilidade do matrimônio em face do divórcio, são válidos tanto para os católicos como para os não-católicos. O mesmo se poderia dizer a respeito da finalidade procriativa do matrimônio, ou das questões referentes aos anticoncepcionais, à esterilização, à inseminação artificial, à “clonagem” de seres humanos etc.

54. A defesa que os católicos fazem dos valores do matrimônio cristão é substancialmente aplicável a todo verdadeiro matrimônio natural. Quando se tenta tutelar, por exemplo, em termos legislativos, a vida do nascituro, ou a estabilidade do vínculo conjugal, não se está pretendendo impor aos não-católicos valores e princípios específicos da Igreja. Isto, evidentemente, contrariaria o caráter não-confessional do Estado brasileiro e o princípio da liberdade de consciência. Pelo contrário, quando se age assim, estão-se reafirmando valores e princípios comuns a todo o gênero humano. Esses valores podem e devem ser pleiteados em benefício da dignidade humana, da mesma forma como se defendem a vida humana, a justiça social ou a igualdade de oportunidade para todos.
O conceito de matrimônio

55. O Código de Direito Canônico oferece um conceito de matrimônio muito simples e útil para nós: “a aliança matrimonial pela qual o homem e a mulher constituem entre si uma comunhão para a vida toda é ordenada por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole, e foi elevada, entre os São valores e princípios comuns a todo ser humano O matrimônio no Código de Direito Canônico: comunhão para a vida toda batizados, à dignidade de sacramento”. Essa oportuna e significativa referência à índole natural das finalidades do matrimônio exige que nos detenhamos nas suas raízes naturais.

As finalidades naturais

56. Não existe uma instituição social e jurídica que, como o matrimônio e a família, esteja tão estreitamente vinculada à natureza humana e à lei natural. O Direito divino positivo, a Teologia, o Direito Canônico regulamentam o matrimônio natural preexistente, consolidando as suas características mais nobres e elevadas.

57. O matrimônio está intimamente ligado ao instinto sexual. A diferença de sexos, a atração física, afetiva e psicológica entre o homem e a mulher são a base natural do matrimônio. O instinto tende a satisfazer-se de forma heterossexual, tendo como resultado a procriação, que conserva e multiplica a espécie.

58. A união do homem e da mulher consegue uma complementação não puramente biológica, mas uma “integração” completa – afetiva, intelectual, espiritual e vital – dos valores da virilidade e da feminilidade, para os constituir uma só carne.

59. Fruto natural dessa união são os filhos. Estes levam gravados na sua personalidade a união psicobiológica dos seus progenitores. O filho, poderíamos dizer, é a encarnação visível da unidade do homem e da mulher, vinculados pelo matrimônio.

60. É dessa forma que a família humana se conserva e se perpetua. Mas o crescimento da espécie humana tem características muito especiais. Não comporta apenas um nascimento e crescimento biológico, senão também psíquico e sociológico. O novo ser não nasce direta e imediatamente na sociedade global, mas no grupo familiar. E o trabalho educativo dos pais possibilita à família ser a porta de saída desse novo ser humano plenamente capaz para a sociedade. O parto biológico entrega o ser à vida. E – se se pode falar assim – o “parto sociológico” entrega à sociedade um ser humano formado, maduro.

61. Para chegar a constituir uma pessoa humana, no sentido pleno da palavra, a geração não basta. Sem a educação a geração é um ato imperfeito. Geração e educação são funções complementares. Essa verdade é constatada por muitos fenômenos sociais, como a delinqüência infantil e juvenil. Ela provém, em altíssimas percentagens, de lares desajustados onde não se exerce uma tarefa educativa adequada.
As finalidades do matrimônio na Bíblia

62. Estando, como já se disse, a instituição matrimonial profundamente ligada à natureza humana e aos seus instintos mais primordiais, não nos pode surpreender a íntima correlação existente entre as finalidades do matrimônio natural e os textos bíblicos. Encontramos, efetivamente, em dois textos do Gênesis, as mesmas finalidades que apresentou a análise do matrimônio natural:

1. No primeiro relato indica-se a configuração heterossexual da humanidade e afirma-se claramente a procriação como uma das finalidades primordiais do casamento: “Deus criou o homem à sua imagem e criou-os homem e mulher; e os abençoou dizendo-lhes: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a”.

2. No segundo texto, não se fala do fim procriativo, mas do amor como integração de personalidades: “Não é bom que o homem esteja só; dar-lhe-ei uma auxiliar que lhe seja semelhante [...] Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe para unir-se à sua mulher; e serão os dois uma só carne”.

Eis as duas grandes finalidades do matrimônio: de um lado, a satisfação sexual, a união esponsal e o amor; e, de outro, a geração e educação dos filhos.

A satisfação sexual e o amor

63. A inclinação afetiva tem uma essencial tendência heterossexual, na qual reside a condição da complementaridade plena, tanto em sua dimensão corpóreo-sexual, como na sua profundidade pessoal, afetiva e espiritual. No ser humano até a dimensão biológico-instintiva pode e deve ser impregnada da afetividade, racionalidade e responsabilidade. A pessoa é uma unidade psicossomática. Todos os aspectos, corporais e espirituais, devem ser orientados para a comunhão plena de duas pessoas, de duas vidas.

64. Precisamente por isso, que na união conjugal, ao lado da finalidade puramente física, existe, de modo também natural, o “afeto marital” ou o amor, a integração das personalidades, a intercomunicação e a cooperação mútua.

65. A antropologia e a psiquiatria experimental contemporânea nos mostram que, quando se exclui ou se marginaliza o compromisso afetivo nas relações interpessoais, a relação humana fica afundada, perturba-se e desce a um nível mais baixo do que o das relações entre animais. O homem e a mulher, ainda que funcionalmente possam entrelaçar-se como seres anônimos, de fato, nem o são nem jamais o podem ser. E quando se tratam como simples objetos de prazer, cometem sempre uma violência, um atentado contra a essência da sua humanidade. A repressão da dimensão afetiva, nesses casos, gera sentimentos de culpa, subestimação, nojo e náusea, inclusive entre os não-cristãos. E isso acaba por cercar a pessoa num processo de neurose. A reorientação da sexualidade humana no marco da antropologia cristã exige a satisfação das suas quatro dimensões: generativa, afetiva, cognoscitiva e espiritual.

66. Quando se dá esta união integral, que partindo do sexual chega até o religioso e espiri-tual, realmente se realiza essa comunhão da vida toda. É isso o que verdadeiramente significa o matrimônio.

67. Certamente, a sexualidade humana tem algo de comum com aquela meramente animal. Também ela pode ser ditada pelo instinto, manifestando-se de maneira predominantemente genital, tendo como meta apenas o alívio da libido e não se preocupando com os sentimentos. Nesse caso, o outro se torna um mero objeto de uso: o compromisso é inexistente; a escolha do parceiro se dá a partir de meros estímulos sensíveis; a realização pessoal é fugaz, física; a fecundidade é meramente acidental. Na antiga Grécia, esse nível de amor chamava-se amor de apetência e era confiado ao amparo da deusa Afrodite.

68. No entanto, a sexualidade humana comporta um segundo nível ou dimensão mais profunda. Na cultura grega chamava-se amor de complacência e tinha Eros como seu “deus protetor”. Nesse nível de amor, a manifestação não é só genital, mas também afetiva. Nele se busca a realização de sonhos e se anseia pelo fim da solidão. Porém ainda é um nível bastante superficial da realidade da pessoa humana. No amor de complacência, o compromisso é transitório, o sentimento básico é egocêntrico e a sua manifestação característica é o ciúme. A escolha do parceiro baseia-se na auto-satisfação. Em conseqüência, a realização pessoal é frágil, porque depende dessa auto-satisfação (complacência) que a outra parte possa oferecer.

69. Um nível ainda mais profundo da vivência humana da sexualidade é o chamado amor de benevolência, que os gregos dedicavam à deusa Filia (a raiz latina benevolere significa querer o bem do outro). Essa deusa é a guardiã do amor que a mãe dedica aos seus filhos, modelo dessa entrega que “quer o bem” do outro. No amor de benevolência, não estão envolvidas só as dimensões física e afetiva da pessoa, mas a pessoa inteira, o seu bem integral. Sua meta é um encontro profundo. O sentimento é o de respeito mútuo, de doação e responsabilidade. O compromisso é permanente. A escolha e a dedicação total ao parceiro se dão pelo que ele é, e não pelo que se gostaria que ele fosse. Então, a realização mútua e pessoal que daí decorre é estável, e redunda na comunhão completa das duas personalidades.

70. Mas a dimensão ou nível especificamente cristão do amor é o do amor ágape, que poderíamos denominar o amor de transcendência. Sua meta é a comunhão. O sentimento é o da oblação da própria vida. É o mandamento novo de Jesus: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. O “amar ao próximo como a si mesmo” era já conhecido no Antigo Testamento, mas Jesus vem apresentar um critério objetivo para o amor cristão: é o amor com que ele mesmo amou a humanidade. É o amor de quem dá a vida por seus amigos. Mais ainda: é o amor de quem é capaz de amar os próprios inimigos, não porque inimigo, mas porque filho de Deus. É sair de si mesmo, em direção ao outro, comprometendo-se e acolhendo o outro no que ele tem de único e irrepetível.

71. Na verdade, as dimensões ou níveis mais profundos de vivência do amor e da sexualidade não anulam a dimensão biológica, hormonal ou erótica. Integram-nos numa ordem e sentido de valores superiores. Ficar apenas no primeiro patamar, o afrodisíaco, é muito primitivo, grotesco e rudimentar. Precisa ser superado. Porém, não parecem pensar assim certos tipos de “sexólogos”, que preconizam o sexo sem amor. A clássica cultura greco-romana consideraria alguns aspectos da atual revolução sexual como uma verdadeira involução sexual: um regresso ao estágio mais rudimentar e primitivo de uma genitalidade puramente biológica ou instintiva. Dá-se aqui uma inversão degradante de valores.

Rafael Vitola Brodbeck

Um comentário:

Cris GoMon disse...

Gostei das informações, que desconhecia!

E gostei mais ainda do nariz torcido para a CNBB... RS. Então essa não é uma impressão apenas minha! Que bom! rs.

"Religião" e partidarismo político me parece tão perverso quanto partidarismo político e poder judiciário...

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